segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Viagem relâmpago a memórias militares...

Viagem relâmpago a memórias militares...

Tenho deparado com escritos e imagens que me relembram tempos idos da minha vida militar, designadamente em terras da Guiné, na povoação do Xitole.
Imagens que agitam imagens adormecidas na minha memória e que me levam a relembrar e escrever algo sobre o assunto, embora sem recurso a quaisquer apoios que me permitam proceder a evocações mais objectivas e, até, devidamente enquadradas no calendário.
Para já, em jeito de síntese, evocarei o trajecto da minha vivência militar. Depois (quem sabe?) talvez venha a relembrar mais pormenorizadamente alguns eventos, documentando-os, sempre que possível, com fotografias da época.
Tudo começou em Julho de 1970, quando chequei às Caldas da Rainha para fazer a recruta. Uma recruta como tantas outras num quartel grande e impessoal, a deixar poucas marcas – pelo menos pela positiva.
Depois, em meados de Setembro do mesmo ano, fui para Vendas Novas tirar a especialidade de atirador - pelos vistos uma inovação na arma de artilharia, imposta pela especificidade da guerra colonial.



Publicada por Valhalla em epam1987.blogspot.com
- Escola Prática de Artilharia, na simpática localidade de Vendas Novas - 
Em Vendas Novas, a par da dureza do treino ainda havia lugar para os instruendos serem tratados como pessoas. Os instrutores, dos quais já só recordo o nome do Tenente Miliciano Lima (de Espinho), justificavam o rigor e a dureza do treino em nome de teatros de guerra onde já tinham actuado e, passado pouco tempo, vim a confirmar que estavam absolutamente certos, pelo que ainda hoje lhes estou grato pela sua importante acção formativa.
Saído de Vendas Novas cheguei a Espinho (GACA-3) em Dezembro de 1970 para colaborar na formação de recrutas. Era um bom quartel pois, no essencial, era composto de boa gente, incluindo diversos amigos dos tempos idos do velho Liceu Alexandre Herculano.





Autor: Miguel Pinto - br.olhares.com
- Ex-GACA 3 (Paramos - Espinho), que passou a Regimento de Engenharia -
De um saldo francamente positivo, apenas destaco um episódio deveras caricato. Numa ocasião em que dava treino aos recrutas, estes seguravam as G3 sem obedecerem a um certo folcrore continental, segundo o qual o cano de uma arma teria de apontar para a esquerda, enquanto o da seguinte teria de estar voltado para a direita e por aí adiante, numa encenação que, embora bonita de se ver, não era nada funcional e, à luz de critérios de eficácia e rigor, até era caricata e condenável.
Pondo em prática o que me tinham ensinado os mestres de Vendas Novas, os recrutas que estavam a meu cargo levavam a arma como lhes dava jeito, tendo em conta que, em cenário real, ela teria de ser dispararada o mais rapidamente possível, quando se justificasse o seu uso. E como a maioria dos recrutas se servia da mão direita os canos iam praticamente todos apontados para a esquerda, sem quaisquer preocupações de coreografia ou de estética.
Isso valeu-me ter sido abordado por um Sr. Capitão que, irritado com o espetáculo que viu e pouco interessado nas minhas explicações pragmáticas, resolveu, pura e simplesmente, participar de mim ao responsável pela instrução (Capitão Raimundo).





Fevº de 1970 - Guiné - foto em blogueforanadaevaotres.blogspot.com
- Para o irritado Capitão de Espinho a realidade do teatro de guerra era uma verdadeira balda -
Inevitavelmente fui chamado à presença dos dois. Tive o ensejo de explicar as razões da minha alegada violação coreográfica e, com surpresa, o Capitão Raimundo sentenciou, sem papas na língua, que eu devia continuar com tal método de instrução. Parece uma mera questão de pormenor, mas de facto não é. O Capitão Raimundo tinha estado no teatro de guerra e o outro não! Apesar de o país estar envolvido numa longa e penosa guerra de guerrilha, havia militares do quadro que ainda só sonhavam com desfiles e paradas!
Em Espinho nem sequer cheguei a assistir ao juramento de bandeira dos recrutas a que estava ligado, pois fui mobilizado para a Guiné, em rendição individual, onde cheguei no 1º de Maio de 1971, depois de 11 dias de viagem a bordo do Afredo da Silva (barco de carga e passageiros), com direito a 2 dias de paragem em Cabo Verde.

O Alfredo da Silva era um navio misto, de passageiros e carga, construído pela Companhia União Fabril no estaleiro naval da Agência Geral dos Portos de Lisboa, em 1949. Com cerca de 103 metros de comprimento e quase 14 de boca máxima, possuía um porte bruto de 3.374,14 toneladas, potência de 2660 cavalos (produzida por dois motores suecos a diesel), e conseguia obter a velocidade máxima de 13,5 nós. Navegava com 45 tripulantes e podia albergar 88 passageiros, 20 em primeira classe e 68 em classe turística, também designada por “segunda”. Foi pertença de apenas dois armadores, a Sociedade Geral de Comércio, Indústria e Transportes (popularmente conhecida por Sociedade Geral e pela sigla SG), de Lisboa, entre 1950 e 1972, e a Companhia Nacional de Navegação, até 1973, ano em que foi abatido ao serviço.

©  Jorge Silva – Furriel Miliciano – Guiné 1971/73
- O Alfredo da Silva navegou cerca de 1/4 de século, entre 1949 e 1973 -

No fim da viagem (01/05/71), quando o Alfredo da Silva atracou em Bissau, comecei a ouvir uma voz vinda de alguém que, em pleno cais, com camuflado vestido e divisas de furriel, não parava de gritar a plenos pulmões pelo meu nome.



©  Jorge Silva – Furriel Miliciano – Guiné 1971/73
- Um barco a atracar no cais de Bissau -
Quando finalmente pus os pés em terra esse camarada agarrou-se a mim e abraçou-me como se eu fosse o seu anjo de salvação e segredou-me que já me esperava há mais de 2 meses para poder regressar ao continente. De facto eu levava comigo uma guia de marcha para me apresentar em Bolama, no Centro de Instrução Militar, pelos vistos para o substituir nas suas funções de instrutor.


Foto retirada de http://rumoafulacunda.wordpress.com/
- Vista aérea de uma parte de Bolama (um paraíso que fui impedido de conhecer) -
Com medo que eu desertasse, o dito camarada acompanhou-me até ao Quartel General, onde me fui apresentar. Chegados lá, um Capitão chamou pelo meu nome e, secamente, anunciou que, afinal,  o meu destino seria Cufar - Pelotão de Caçadores Nativos 51.





Foto de Humberto Reis (2006) - CCAÇ 12 numa bolanha na zona do XIme (Guiné) 
- Imagem de uma unidade de Caçadores Nativos - 
Na circunstãncia ousei exibir a guia de marcha que levava comigo e, em tom audível, relembrei que ela me destinava ao CIM de Bolama e não a Cufar. De nada serviu. Em linguagem grosseira, de caserna, o homem limitou-se a dizer-me, com visível ar ditatorial e de gozo, para eu utilizar a alegada guia em vez de papel higiénico. E tanto eu como o camarada que ansiosamente esperava que o fosse substituir em Bolama sofremos uma enorme frustração.


©  Jorge Silva – Furriel Miliciano – Guiné 1971/73
- Piscina em instalações anexas ao Quartel General de Bissau, onde o Capitão com "linguagem de caserna" residia confortavelmente -
Imagem da porta de armas do quartel de Cufar - retirada de http://ccac4740.com/ - Uma realidade que afinal nunca conheci -
Entretanto, enquanto esperava por embarque para Cufar, hospedei-me no Batalhão de Intendência, graças ao Rui Mendes (meu primo por afinidade). Fui tão bem recebido e tratado por todos que acabei por digerir a frustração da troca de destinos. E, num arremedo de justiça, acabei por não conhecer Cufar, pois entretanto saiu uma norma que impunha a experiência de pelo menos 6 meses de mato para se integrar uma unidade de nativos. 
Por isso – e felizmente – passei a ter como destino o Xitole (CART 2716), onde acabei por chegar de avioneta, na companhia do Tenente Coronel Polidoro Monteiro, do comando do BART 2917, sediado em Bambadinca.


©  Jorge Silva – Furriel Miliciano – Guiné 1971/73
- Vista aérea do quartel de Bambadinca (BART 2917), a que pertencia a CART 2716 (Xitole) -
Como homem de acção o comandante Polidoro Monteiro fez questão de a avioneta sobrevoar algumas tabancas que ele ia identificando pelos nomes ao mesmo tempo que fazia questão de referir que pertenciam ao IN (inimigo). Na altura, ainda sem pisar o mato, foi autêntico tratamento de choque, já que elas estavam tão próximas do quartel do Xitole... 


Foto retirada de: blogueforanadaevaotres.blogspot.com
- O Tenente Coronel Polidoro Monteiro, assinaladoà direita do General Spínola -
Mas compreendi a força da mensagem, como um conselho sábio de que ali não poderia haver lugar para facilidades ou distracções!
Ao pisar o terreno do Xitole fui recebido como no meio do mato se sabe receber.


©  Jorge Silva – Furriel Miliciano – Guiné 1971/73
- A exuberante "porta de armas" do quartel do Xitole (CART 2716) -
Sem pompa, mas com calor, solidariedade e camaradagem, este periquito foi acolhido com carinhosos e estridentes “piu-piu” no seio daquela família militar. 
E todos quiseram ver de perto e, até, tocar este novo elemento, como a dizerem-me, gestualmente que, daí em diante, podia contar com eles.
Para mim foi uma sensação indescritível, embora muito calorosa e profunda. 
Estranhamente, embora triste por estar a muitas milhas de casa, de repente senti-me confortável por estar em casa! E ao cair da noite recolhi aos meus sumptuosos aposentos...


©  Jorge Silva – Furriel Miliciano – Guiné 1971/73
- Imponente pôr do Sol no quartel do Xitole (CART 2716) -


©  Jorge Silva – Furriel Miliciano – Guiné 1971/73
- A maioria dos aposentos para pernoitar no quartel do Xitole (CART 2716), tinham a vantagem (segurança) de ocupar cerca de metro e meio abaixo do chão -
Aí partilhei preocupações e alegrias até Março de 1972 – altura em que a CART 2716 teve a merecida recompensa de encetar os caminhos do regresso a Portugal continental.
©  Jorge Silva – Furriel Miliciano – Guiné 1971/73
- Bissau, Março/72 - Desfile de despedida da CART 2716 (o comandante da companhioa, Capitão Miliciano. Espinha de Almeida, está assinalado com um pequeno círculo vermelho) -
Quase por magia (pois ainda hoje desconheço as razões), em 27 de Março de 1972 (dia do meu 24º aniversário) fui colocado no Batalhão de Engenharia (BENG 447).
Na Engenharia fui responsável pelo depósito dos materiais destinados aos reordenamentos, que, sendo um instrumento crucial da acção política e social de então, visavam o reagrupamento e a reorganização de populações, permitindo o seu controlo mais eficaz, a par de uma melhoria nos apoios sociais.


© Foto do Furriel Costa Paulo CCaç 2549
Região do Oio - Farim - Subsector Cuntima - 1970
Reordenamento: construção de uma localidade nova para as populações
no âmbito da política seguida pelo Gen. Spínola

Nessas funções dependi directamente do Capitão Miliciano Quaresma que, por seu turno, reportava ao (então) Major Otelo Saraiva de Carvalho.



Foto retirada de quebranotas.blogspot.com - Otelo Saraiva de Carvalho
Nos tempos de lazer, eu e outros camaradas fundámos um conjunto musical (Beng 447) e tivemos o ensejo de dinamizar inúmeros espectáculos, designadamente na Associação Comercial da Guiné, no cinema Udib, no Hospital de Bissau, nos Clubes de Sargentos e de Oficiais do Quartel General, no restaurante A Tabanca e em diversas festas particulares, tanto de civis como de militares.
©  Jorge Silva – Furriel Miliciano – Guiné 1971/73
- Bissau/1972, no intervalo de uma actuação do conjunto musical BENG 447 -
Nessa actividade tive o ensejo de conhecer diversas individualidades (civis e militares) de Bissau, designadamente o então Alferes Miliciano Nuno Nazareth Fernandes, também colocado no BENG 447, em Bissau, e autor, como se sabe, de diversas canções que venceram o festival português da canção, tais como "O vento mudou", "Desfolhada portuguesa" e "Menina".


Foto de:  estival1979.no.sapo.pt  -  Festival RTP da canção 1979 - Nuno Nazareth Fernandes
E numa altura em que os voos da TAP estavam suspensos por razões de segurança, valeu-me o Tenente Coronel Saraiva (do Quartel General) para, face às dificuldades, me oferecer a viagem de regresso num avião militar em 24 de Abril de 1973...
Nesse dia vivi um sonho maravilhoso e indescritível, que nem o ruído ensurdecedor dos motores do avião conseguiu esmorecer.
Mal pisei o solo do aereoporto de Lisboa fiz ouvidos moucos às instruções de um Alferes que, a todo o custo, me procurava encaminhar para os Adidos (na calçada da Ajuda), e, louco de alegria, apanhei o primeiro táxi que me apareceu e, sem olhar para trás, segui para Ermesinde ansioso por rever e abraçar a minha mulher e os meus dois filhos que, bem vistas as coisas, sofreram mais com esta história do que eu próprio...




Actual Parque Urbano de Ermesinde - Autor: João Pais II, em: br.olhares.com
- Sem dúvida, uma realidade bem distinta da vivenciada na Guiné -

Jorge Silva
ex-Furriel Miliciano
Email: jorgesilva2716@gmail.com



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