sábado, 4 de setembro de 2010

Memórias das vésperas do dia mais feliz da CART 2716



Memórias das vésperas do dia mais feliz da CART 2716
A CART 2716, enquanto unidade do BART 2917 (Bambadinca), teve a seu cargo a defesa da zona do Xitole, no leste da Guiné, entre 1970 e 1972.
A CART 2716 era uma companhia quase exclusivamete formada por jovens milicianos (na casa dos 20 a 23 anos), incluindo o Capitão Espinha de Almeida (comandante) que, de entre eles, era o mais velho, apesar de apenas contabilizar três décadas de vida.
Apenas havia dois elementos do quadro permanente - os sargentos Santos e Pires que, apesar de mais maduros, eram, mesmo assim, homens relativamente jovens, na casa dos quarenta e tal anos.
Como tantos outros da época, no ex-ultramar português os jovens da CART 2716 foram impedidos de viver com normalidade uma fase crucial do seu amadurecimento.
No leste da Guiné, longe de tudo que lembrasse um resquício de civilização, foram prematuramente forçados

  • a trocar as convidativas praias estivais pelos perigos do capim e das matas;
                                                             
  • a trocar os passeios com as namoradas pelos patrulhamentos e operações na companhia de camaradas de armas;
                                                             
  • a trocar o conforto dos lares por toscos abrigos cavados no solo e cobertos de troncos, terra e cascalho, que também serviam de abrigo a cobras e outros répteis;
                                                             
  • a trocar a apetecível comida portuguesa por refeições improvisadas à base de arroz, de conservas de cabala e de rações de combate, onde a sobremesa tendia teimosamente a ser goiabada e uma simples refeição com batatas era um luxo festejado;
                                                             
  • a trocar a promissora (embora amordaçada) rádio portuguesa pelas emissões intencionalmente intimidatórias da rádio PAIGC, enquanto instrumento da vertente psicológica da guerrilha;
                                                             
  • a trocar a música melódica e harmoniosa das “boites e bares dos anos 70 pelas batidas ruidosas dos morteiros e dos canhões sem recuo, misturadas com solos estridentes das famigeradas e temidas costureirinhas (pistolas metralhadoras);
                                                             
  • a trocar a pacata família de origem por uma família de armas adoptiva, onde umas caixas de transporte de bacalhau se transformavam, milagrosamente num guarda-fatos, uma lata de coca-cola passava, de repente, a chamar-se copo ou chávena e os objectos que evocavam uma infância ainda bastante próxima tinham sido macabramente substituídos por metralhadoras G3, morteiros, bazucas e granadas;

  • a trocar os melhores anos e sonhos das suas vidas por um poço sem fundo de incertezas, de incomodidades e de perigos, que alguns nem sequer tiveram o ensejo de evocar no feliz dia do regresso, simplesmente porque a guerra colonial se encarregou de lhes amputar esse elementar direito.

      Como tantos outros da época, no ex-ultramar português os jovens da CART 2716 foram impelidos a amadurecer num contexto que, felizmente, nos dias de hoje os seus filhos e netos têm imensas (e compreensíveis) dificuldades em captar e compreender, inclusive nos seus mais simples contornos.
      Uma simples rotina da época ajudará, por certo, a ilustrar melhor o que as palavras e as fotografias não conseguem documentar. 
      Era usual os militares improvisarem uma folha com números inscritos desde 730 até 0, onde cada número ia sendo assinalado (abatido) sempre que passava mais um dia da sua comissão de serviço. 
      Neste particular, como em tantos outros, os objectivos individuais e colectivos coincidiam com o sonho do glorioso dia zero, o que ajudava a cimentar as relações de camaradagem (e amizade) existentes.
      Em 25 de Março de 1971, quando eu ainda apenas assinalava no meu mapa o 401º dia a generalidade dos elementos da CART 2716 marcava, de forma inexorável, merecida e seguramente festiva, o ambicionado dia zero, deixando para trás trilhos que não tinham sido livremente escolhidos para readquirir o direito de passar a procurar os trilhos de reintegração na vida.
      As imagens que se seguem ilustram a cerimónia militar (desfile) que decorreu em Bissau, no quartel dos Adidos, antes de a generalidade dos elementos da CART 2716 (e do BART 2917) embarcarem, rumo às terras onde nasceram e aos braços saudosos dos familiares e amigos que emocionadamente os esperavam. 
      As fotos que figuram adiante são, por isso, uma espécie de hino a um punhado de homens (muito jovens na sua maioria) que se viram privados do direito de amadurecer como é comum os jovens amadurecerem em tempos de paz. 
      Pela minha parte, sinto a obrigação de, através das fotografias seguintes, lhes prestar esta singela homenagem, inclusive em memória do acolhimento, apoio e camaradagem que deles sempre recebi nos longos meses que partilhámos no Xitole.

      ©  Jorge Silva – ex-Furriel Miliciano
      Bissau, Março/72: despedida da CART 2716 (Xitole- Guiné), do BART 2917

      ©  Jorge Silva – ex-Furriel Miliciano
      Bissau, Março/72: despedida da CART 2716 (Xitole- Guiné), do BART 2917
      General António de Spínola

      ©  Jorge Silva – ex-Furriel Miliciano
      Bissau, Março/72: despedida da CART 2716 (Xitole- Guiné), do BART 2917

      Bissau, Março/72: despedida da CART 2716 (Xitole), do BART 2917
      ©  Jorge Silva – Furriel Miliciano – Guiné 1971/73 (CART 2716 – Xitole  e  BENG 447 - Bissau)

      ©  Jorge Silva – ex-Furriel Miliciano
      Bissau, Março/72: despedida da CART 2716 (Xitole- Guiné), do BART 2917

      ©  Jorge Silva – ex-Furriel Miliciano
      Bissau, Março/72: despedida da CART 2716 (Xitole- Guiné), do BART 2917

      ©  Jorge Silva – ex-Furriel Miliciano
      Bissau, Março/72: despedida da CART 2716 (Xitole- Guiné), do BART 2917

      Tal como em 25 de Março de 1972, embora agora sem lágrimas a humedecerem-me os olhos, envio um grande abraço a todos os "velhos" camaradas e amigos que a incompreensão e a teimosia de um punhado de homens com ideias já então fora de moda obrigou a que nos reuníssemos e convívessemos em terras da Guiné, designadamente no Xitole.
      Jorge Silva
      ex-Furriel Miliciano da CART 2716 - Xitole
      Email: jorgesilva2716@gmail.com