terça-feira, 17 de agosto de 2010

Ponte dos Fulas: apareceu posto de sentinela em cima do fortim...




Xitole - Ponte dos Fulas:
                           
Apareceu posto de sentinela em cima do fortim...


Para quem prestou serviço militar no Xitole (povoação do leste da Guiné, a cerca de 150 Km de Bissau e localizada junto a uma curva acentuada do Rio Corubal), a Ponte dos Fulas tinha um significado muito especial (quase mítico), servindo, inclusive, como "repouso do guerreiro", já que quem lá estava usualmente ficava liberto de patrulhamentos e operações.
    
Xitole-Bissau através do "Maps.Google" - cerca de 150 Km se não se utilizarem transportes fluviais. 


©  Jorge Silva – Furriel Miliciano – Guiné 1971/73 (CART 2716 – Xitole  e  BENG 447 - Bissau)
Aspecto geral da zona frontal do aquartelamento do Xitole entre 1970 e 1972 - CART 2716. À direita distingue-se a capela.
© Humberto Reis - Xitole em 1970 - Vista aérea do aquartelamento, posto administrativo, tabanca e áreas envolventes
           
Não admira, pois, que existam diversas referências na internet à Ponte dos Fulas, a qual dista cerca de 3 Km do Xitole, através (na altura) de um piso de terra batida, que era recomendável ser "picado" ao ser utilizado, para se procurar detectar a eventual existência de minas.  
                    
Xitole-Ponte dos Fulas através do "Maps.Google" - cerca de 3 Km na estrada Xitole-Bambadinca. Este percurso era feito diariamente por um pelotão para levar, designadamente, pão e água à Ponte dos Fulas. Dada a fácil (e confirmada) circulação fortuita do PAIGC na área e a possível colocação de minas, procedia-se à picagem preventiva da estrada.
Para os militares do Xitole, a Ponte dos Fulas era, em si mesma, um elemento contraditório. 
    
Por um lado, obrigava os militares aquartelados no Xitole a deslocações e riscos diários, inclusive para abastecerem o destacamento da ponte com pão e água dita potável (entenda-se, para cozinhar).
                       
Mas, em contrapartida, a Ponte dos Fulas era um ponto estratégico que assegurava (e defendia) a ligação por estrada (de terra batida) da Companhia do Xitole à sede do Batalhão, sediado em Bambadinca, a cerca de 40 Km, que (pasme-se!) poderiam demorar para cima de 6 ou 7 horas a percorrer com viaturas! 
                 
©  Jorge Silva – Furriel Miliciano – Guiné 1971/73 (CART 2716 – Xitole  e  BENG 447 - Bissau)
Aspecto da estrada Bambadinca-Xitole, antes de atravessar a Ponte dos Fulas, visível ao fundo.
     
Xitole-Bambadinca através do "Maps.Google" - cerca de 40 Km de piso térreo e irregular, ladeado por vegetação relativamente densa, a convidar o PAIGC à colocação de minas e à realização de emboscadas e a reclamar as inerentes acções preventivas das tropas portuguesas - picagens da estrada e escoltas armadas e apeadas ao longo do percurso.
A Ponte dos Fulas, sobre o Rio Pulom (afluente do Corubal), era essencial para permitir que os reabastecimentos, designadamente de alimentos, chegassem ao aquartelamento do Xitole. De outra forma, a ligação mais viável à "civilização" era por via aérea.


©  Jorge Silva – Furriel Miliciano – Guiné 1971/73 (CART 2716 – Xitole  e  BENG 447 - Bissau)
Aspecto da passagem de uma coluna de reabastecimentos na estrada Bambadinca-Xitole, antes da Ponte dos Fulas. Vê-se uma viatura militar com tropas nativas (CCAÇ 12)  e, de pé, à esquerda, um elemento da CART 2716 que fazia a segurança da estrada. 
Mas percorrer a estrada Bambadinca–Xitole nunca foi tarefa fácil, dado o risco eminente (e  por vezes concretizado) de minas e emboscadas ao longo do percurso, o que exigia, da parte dos militares portugueses, acções de vigilãncia especial e concertada  ao longo de pontos do trajecto considerados estratégicos, mobilizando designadamente forças das Companhias do Xime, Mansambo e Xitole, todas pertencentes ao Batalhão sediado em Bambadinca.
Guardar a ponte e garantir a sua funcionalidade e disponibilidade era, pois, um imperativo que contribuía, designadamente, para a sobrevivência dos militares do Xitole.
Para o efeito, em regime de alternância e pelo período de um mês, havia permanentemente um pelotão numa área relativamente extensa junto à ponte, devidamente delimitada por arame farpado e, dentro do possível minada, para dificultar a eventual (e temida) aproximação (e, no limite: a infiltração) de elementos afectos ao PAIGC, que, segundo informações recolhidas, "gostavam bastante" de rondar áreas dos "latifúndios" do Xitole.
            
©  Jorge Silva – Furriel Miliciano – Guiné 1971/73 (CART 2716 – Xitole  e  BENG 447 - Bissau)
Pormenor da Ponte dos Fulas, na ocasião ornamentada a rigor, inclusive com um sentinela espantalho, para dar as boas vindas aos camaradas da CART 3492 que, chegados de fresco à Guiné, vinham substituir a CART 2716, para esta regressar ao continente.
Duas seccções ficavam alojadas em abrigos improvisados localizados junto da entrada do destacamento (e da sua tosca cozinha), com acesso pelo lado do quartel do Xitole.
©  Jorge Silva – Furriel Miliciano – Guiné 1971/73 (CART 2716 – Xitole  e  BENG 447 - Bissau)
Ao fundo vê-se a bandeira portuguesa içada e à direita desta distinguem-se abrigos. À esquerda, junto à árvore,  fica a cozinha/refeitório rudimentar. Em frente a esta e à direita há uma estrutura de bidões que, salvo erro, servia de zona de chuveiros. 
A outra secção permanecia a cerca de 500 metros dos referidos abrigos, num fortim de dois pisos localizado junto do tabuleiro da ponte, tendo por vizinhos mais próximos os crocodilos que teimavam em banhar-se nas águas do Rio Pulom.
              
©  Jorge Silva – Furriel Miliciano – Guiné 1971/73 (CART 2716 – Xitole  e  BENG 447 - Bissau)
O mítico fortim da Ponte dos Fulas com as suas "seteiras" bem visíveis, junto ao tabuleiro da ponte. Na cobertura vê-se o tosco posto de sentinela que foi construído no tempo da CART 2716 com bidões cheios de terra e pedras, para protecção do sentinela. 
Quando chegaram ao Xitole, tanto a CART 2716 como as companhias que a antecederam (CART 2413 e precedentes) tiveram o ensejo de constatar que o fortim da Ponte dos Fulas não tinha em cima da respectiva placa de cobertura qualquer posto de sentinela, pelo que, até então, o sentinela teria de permaner em cima da ponte ou no interior da parte superior do fortim, onde, usualmente, também dormia o responsável pela secção.
                     
Foto extraída do blogue de "Luís Graça" a evidenciar que inicialmente a cobertura do fortim não tinha posto de sentinela.
No entanto, quando foi render a CART 2716 a CART 3492 já encontrou um posto de sentinela sobre o referido fortim, constituído por um círculo de bidões cheios de pedras e terra e por uma cobertura tosca, improvisada com pequenos troncos e chapa, para tentar proteger minimamente o sentinela das intempéries. 
     
A foto seguinte ilustra a recepção feita (com pompa e circunstância) pela CART 2716 à CART 3492 na Ponte dos Fulas, quando esta atravessou a Ponte dos Fulas pela primeira vez, ouvindo, como era da praxe, um coro ruidoso de "piu-piu", alusivo ao seu estatuto de "periquitos" (designação dada a quem desembarcava pela primeira vez na Guiné).
            
©  Jorge Silva – Furriel Miliciano – Guiné 1971/73 (CART 2716 – Xitole  e  BENG 447 - Bissau)
A foto ilustra a extensão do destacamento da Ponte dos Fulas, ao dar evidência ao caminho de terra batida (parcela da estrada Bambadinca-Xitole) que ligava o fortim à zona dos abrigos que se vê ao fundo, do lado direito. A decoração (arcos ornamentais e sentinela espantalho)  faziam parte da festa de recepção à CART 3492 que, em boa hora, estava prestes a chegar a terras do Xitole. 
Como se vê na foto, o posto de sentinela já existia sobre cobertura do 2º piso do fortim. 
   
E, embora a fotografia não o documente, o acesso ao mesmo era assegurado por uma escada tosca de troncos de madeira, cujos degraus tinham suspensas latas com badalos para produzirem ruído sempre que alguém utilizasse a escada.
A composição fotográfica que se segue documenta o que atrás se disse sobre o citado posto de sentinela, que só passou a existir na vigência da CART 2716. 
O que explicará esta alteração e porque terá sido tomada a iniciativa de a implementar?
Depois de transitar do 1º para o 3º Pelotão, por este só contar com um furriel (o David Guimarães) e, na circunstância, nem sequer dispor de alferes, em Janeiro de 1972 (salvo erro) coube-nos guardar o destacamento da Ponte dos Fulas.
                     
©  Jorge Silva – Furriel Miliciano – Guiné 1971/73 (CART 2716 – Xitole  e  BENG 447 - Bissau)
Os furrieis milicianos David Guimarães (à esquerda) e Jorge Silva na tosca cozinha/refeitório da Ponte dos Fulas, num momento de visível e eloquente inspiração para lidarem com o calor excessivo e a má qualidade da água local, que não era recomendável.  
O furriel miliciano Guimarães ficou alojado junto à entrada do destacamento (via Xitole) e eu (furriel miliciano Silva) fiquei no fortim, onde, como era prática comum, passei a pernoitar no 2º piso, já que no patamar térreo dormiam os restantes elementos da secção.
Como era prática de então, no período nocturno o interior do 2º piso do fortim também servia para a sentinela desempenhar a sua função. 
    
Além de se tratar de um ponto relativamente elevado, tinha umas aberturas (tipo ‘seteiras’) que permitiam ao sentinela observar uma vasta área circundante, designadamente a bolanha frontal e o arvoredo que, a escassas centenas de metros, se impunha como verdadeiro e preocupante enigma para os militares portugueses.
                
©  Jorge Silva – Furriel Miliciano – Guiné 1971/73 (CART 2716 – Xitole  e  BENG 447 - Bissau)
Troço da estrada Bambadinca-Xitole na época das chuvas, antes da travessia da Ponte dos Fulas, com o fortim visível ao fundo. Os verdejantes lados da estrada mostram amplas superfícies planas que, em parte, dificultavam aproximações indesejadas.
Numa das primeiras noites (não sei precisar em qual delas) adormeci enquanto o sentinela andava à volta da minha cama, de ‘seteira em seteira’, a desempenhar a sua valiosa e imprescindível função de vigilância. 
    
As vidas dos que dormiam (e a dele próprio) dependiam do rigor e da eficácia com que desempenhasse a sua tarefa de vigilância.
Confiante, adormeci tranquilo, embalado pelo ruído suave e compassado das solas das suas botas que, na circunstância, até serviam de fundo musical, a convidar a um sono repousante e tranquilo. E no piso inferior, seguramente os restantes elementos também dormiam confiadamente. 
A meio da noite (também não consigo precisar a hora) acordei sobresaltado e dei conta de que o referido fundo musical tinha cessado. O sono extraordinariamente pesado que eu tinha antes de chegar à Guiné tinha-se transfigurado por completo e, quase por magia, tinha passado a ser extraordinariamente leve.
Intrigado, olhei ao redor, num ambiente escuro, fugazmente rasgado por alguns reflexos da lua, e vi um vulto incompreensivelmente imobilizado, colado a uma ‘seteira’, sem dar quaisquer sinais de se querer movimentar.
Levantei-me cuidadosamente para não produzir qualquer ruído e, incrédulo, constatei que o homem tinha mesmo adormecido, depois de, comodamente, ter encostado a espingarda G3 á parede.
Aproximei-me muito lentamente e, apesar disso, o homem permaneceu imóvel.
Peguei na G3 e depois falei-lhe suavemente, para não criar alvoroço. 
     
A sua reacção foi a que se advinha: acordou, mostrou-se receoso e esgotou-se em mil desculpas para atenuar o grave erro cometido.
Lembro-me de lhe ter recomendado que fosse acabar o sono tranquilamente para a cama, sem se preocupar com os turnos de sentinela seguintes. 
    
E, na circunstância, incapaz de tornar a pegar no sono, optei por fazer de sentinela até ao nascer do dia.
Nessa mesma manhã quebraram-se completamente as rotinas da Ponte dos Fulas.
A habitual calma matinal deu lugar a um autêntico reboliço pois foi lançado um objectivo até então imprevisto: construir imediatamente um posto de sentinela em cima da cobertura do fortim e a respectiva escada (tosca) de acesso.
De início houve algumas resistências, o que é natural sempre que algo muda. Uma das preocupações era a referida escada, por se situar mesmo nas costas do sentinela.
A solução para minimizar o problema consistiu em improvisar uns chocalhos, constituídos por latas (salvo erro de coca-cola) com uma espécie de badalo, que passaram a ornamentar a escada para produzirem ruído sempre que alguém a utilizasse.
Enquanto permanecemos na Ponte dos Fulas o local do sentinela passou a ser aquele. 
   
E com isso os riscos de o sentinela adormecer diminuíram significativamente, pois o arvoredo que se avistava a poucas centenas de metros, depois da bolanha, encarregava-se de inspirar um indescritível respeito e convidava o mais despreocupado ou negligente a manter-se permanentemente em estado de alerta.
          
©  Jorge Silva – Furriel Miliciano – Guiné 1971/73 (CART 2716 – Xitole  e  BENG 447 - Bissau)
Aspecto parcial de uma zona frontal ao fortim da Ponte dos Fulas. Ao fundo distinguem-se zonas de vegetação mais densa que, relativamente próximas da ponte, eram convidativas à circulação de elementos do PAIGC e a eventuais acções de flagelação. 
Depois disso não sei se a utilização do referido posto improvisado de sentinela continuou a ser a mesma, pois quem passou a deter esse conhecimento foram os elementos da CART 3492, que ficaram incumbidos de garantir a segurança daquela área.
                       
Apenas sei (conforme ilustrado pelas fotos seguintes do David Guimarães, ex-Furriel Miliciano da CART 2716) que, em 2001, a velha Ponte dos Fulas estava no seguinte estado lastimável:


Foto do David Guimarães a evidenciar (em 2001) a decadência do fortim da Ponte dos Fulas. Não se vê o posto de sentinela na cobertura, possivelmente por estar encoberto pela densa vegetação que testemunha o abandono do local.
Foto do David Guimarães a evidenciar (em 2001) a completa ruína da Ponte dos Fulas, onde só alguns pilares de madeira teimam em permanecer erguidos, resistindo heroicamente à erosão do tempo e ao seu inevitável desaparecimento.
O tempo avança rápido e a idade não perdoa. Mesmo no que se refere a pontes e fortins os 30 anos entretanto decorridos até 2001 deixam marcas inexoráveis...  Pena é que ainda não tenham sido suficientes para que haja uma Guiné melhor, mais próspera, democrática e justa. E, nesse âmbito, um Xitole com mais oportunidades e uma vida bem melhor para os que lá residem - gente cordial e sociável, de etnias essencialmente fula e futa-fula.
     
Jorge Silva
ex-Furriel Miliciano da CART 2716 - Xitole
Email: jorgesilva2716@gmail.com
No seio das tropas portuguesas da Guiné, o periquito era um personagem emblemático. Simbolizava os militares vindos do continente para substituírem os que tinham acabado a sua comissão de serviço. À chegada eram recebidos com coros de estridentes e calorosos "piu-piu", de acordo com a praxe militar na área. E, desejavelmente, a praxe ia-se repetindo.




segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Viagem relâmpago a memórias militares...

Viagem relâmpago a memórias militares...

Tenho deparado com escritos e imagens que me relembram tempos idos da minha vida militar, designadamente em terras da Guiné, na povoação do Xitole.
Imagens que agitam imagens adormecidas na minha memória e que me levam a relembrar e escrever algo sobre o assunto, embora sem recurso a quaisquer apoios que me permitam proceder a evocações mais objectivas e, até, devidamente enquadradas no calendário.
Para já, em jeito de síntese, evocarei o trajecto da minha vivência militar. Depois (quem sabe?) talvez venha a relembrar mais pormenorizadamente alguns eventos, documentando-os, sempre que possível, com fotografias da época.
Tudo começou em Julho de 1970, quando chequei às Caldas da Rainha para fazer a recruta. Uma recruta como tantas outras num quartel grande e impessoal, a deixar poucas marcas – pelo menos pela positiva.
Depois, em meados de Setembro do mesmo ano, fui para Vendas Novas tirar a especialidade de atirador - pelos vistos uma inovação na arma de artilharia, imposta pela especificidade da guerra colonial.



Publicada por Valhalla em epam1987.blogspot.com
- Escola Prática de Artilharia, na simpática localidade de Vendas Novas - 
Em Vendas Novas, a par da dureza do treino ainda havia lugar para os instruendos serem tratados como pessoas. Os instrutores, dos quais já só recordo o nome do Tenente Miliciano Lima (de Espinho), justificavam o rigor e a dureza do treino em nome de teatros de guerra onde já tinham actuado e, passado pouco tempo, vim a confirmar que estavam absolutamente certos, pelo que ainda hoje lhes estou grato pela sua importante acção formativa.
Saído de Vendas Novas cheguei a Espinho (GACA-3) em Dezembro de 1970 para colaborar na formação de recrutas. Era um bom quartel pois, no essencial, era composto de boa gente, incluindo diversos amigos dos tempos idos do velho Liceu Alexandre Herculano.





Autor: Miguel Pinto - br.olhares.com
- Ex-GACA 3 (Paramos - Espinho), que passou a Regimento de Engenharia -
De um saldo francamente positivo, apenas destaco um episódio deveras caricato. Numa ocasião em que dava treino aos recrutas, estes seguravam as G3 sem obedecerem a um certo folcrore continental, segundo o qual o cano de uma arma teria de apontar para a esquerda, enquanto o da seguinte teria de estar voltado para a direita e por aí adiante, numa encenação que, embora bonita de se ver, não era nada funcional e, à luz de critérios de eficácia e rigor, até era caricata e condenável.
Pondo em prática o que me tinham ensinado os mestres de Vendas Novas, os recrutas que estavam a meu cargo levavam a arma como lhes dava jeito, tendo em conta que, em cenário real, ela teria de ser dispararada o mais rapidamente possível, quando se justificasse o seu uso. E como a maioria dos recrutas se servia da mão direita os canos iam praticamente todos apontados para a esquerda, sem quaisquer preocupações de coreografia ou de estética.
Isso valeu-me ter sido abordado por um Sr. Capitão que, irritado com o espetáculo que viu e pouco interessado nas minhas explicações pragmáticas, resolveu, pura e simplesmente, participar de mim ao responsável pela instrução (Capitão Raimundo).





Fevº de 1970 - Guiné - foto em blogueforanadaevaotres.blogspot.com
- Para o irritado Capitão de Espinho a realidade do teatro de guerra era uma verdadeira balda -
Inevitavelmente fui chamado à presença dos dois. Tive o ensejo de explicar as razões da minha alegada violação coreográfica e, com surpresa, o Capitão Raimundo sentenciou, sem papas na língua, que eu devia continuar com tal método de instrução. Parece uma mera questão de pormenor, mas de facto não é. O Capitão Raimundo tinha estado no teatro de guerra e o outro não! Apesar de o país estar envolvido numa longa e penosa guerra de guerrilha, havia militares do quadro que ainda só sonhavam com desfiles e paradas!
Em Espinho nem sequer cheguei a assistir ao juramento de bandeira dos recrutas a que estava ligado, pois fui mobilizado para a Guiné, em rendição individual, onde cheguei no 1º de Maio de 1971, depois de 11 dias de viagem a bordo do Afredo da Silva (barco de carga e passageiros), com direito a 2 dias de paragem em Cabo Verde.

O Alfredo da Silva era um navio misto, de passageiros e carga, construído pela Companhia União Fabril no estaleiro naval da Agência Geral dos Portos de Lisboa, em 1949. Com cerca de 103 metros de comprimento e quase 14 de boca máxima, possuía um porte bruto de 3.374,14 toneladas, potência de 2660 cavalos (produzida por dois motores suecos a diesel), e conseguia obter a velocidade máxima de 13,5 nós. Navegava com 45 tripulantes e podia albergar 88 passageiros, 20 em primeira classe e 68 em classe turística, também designada por “segunda”. Foi pertença de apenas dois armadores, a Sociedade Geral de Comércio, Indústria e Transportes (popularmente conhecida por Sociedade Geral e pela sigla SG), de Lisboa, entre 1950 e 1972, e a Companhia Nacional de Navegação, até 1973, ano em que foi abatido ao serviço.

©  Jorge Silva – Furriel Miliciano – Guiné 1971/73
- O Alfredo da Silva navegou cerca de 1/4 de século, entre 1949 e 1973 -

No fim da viagem (01/05/71), quando o Alfredo da Silva atracou em Bissau, comecei a ouvir uma voz vinda de alguém que, em pleno cais, com camuflado vestido e divisas de furriel, não parava de gritar a plenos pulmões pelo meu nome.



©  Jorge Silva – Furriel Miliciano – Guiné 1971/73
- Um barco a atracar no cais de Bissau -
Quando finalmente pus os pés em terra esse camarada agarrou-se a mim e abraçou-me como se eu fosse o seu anjo de salvação e segredou-me que já me esperava há mais de 2 meses para poder regressar ao continente. De facto eu levava comigo uma guia de marcha para me apresentar em Bolama, no Centro de Instrução Militar, pelos vistos para o substituir nas suas funções de instrutor.


Foto retirada de http://rumoafulacunda.wordpress.com/
- Vista aérea de uma parte de Bolama (um paraíso que fui impedido de conhecer) -
Com medo que eu desertasse, o dito camarada acompanhou-me até ao Quartel General, onde me fui apresentar. Chegados lá, um Capitão chamou pelo meu nome e, secamente, anunciou que, afinal,  o meu destino seria Cufar - Pelotão de Caçadores Nativos 51.





Foto de Humberto Reis (2006) - CCAÇ 12 numa bolanha na zona do XIme (Guiné) 
- Imagem de uma unidade de Caçadores Nativos - 
Na circunstãncia ousei exibir a guia de marcha que levava comigo e, em tom audível, relembrei que ela me destinava ao CIM de Bolama e não a Cufar. De nada serviu. Em linguagem grosseira, de caserna, o homem limitou-se a dizer-me, com visível ar ditatorial e de gozo, para eu utilizar a alegada guia em vez de papel higiénico. E tanto eu como o camarada que ansiosamente esperava que o fosse substituir em Bolama sofremos uma enorme frustração.


©  Jorge Silva – Furriel Miliciano – Guiné 1971/73
- Piscina em instalações anexas ao Quartel General de Bissau, onde o Capitão com "linguagem de caserna" residia confortavelmente -
Imagem da porta de armas do quartel de Cufar - retirada de http://ccac4740.com/ - Uma realidade que afinal nunca conheci -
Entretanto, enquanto esperava por embarque para Cufar, hospedei-me no Batalhão de Intendência, graças ao Rui Mendes (meu primo por afinidade). Fui tão bem recebido e tratado por todos que acabei por digerir a frustração da troca de destinos. E, num arremedo de justiça, acabei por não conhecer Cufar, pois entretanto saiu uma norma que impunha a experiência de pelo menos 6 meses de mato para se integrar uma unidade de nativos. 
Por isso – e felizmente – passei a ter como destino o Xitole (CART 2716), onde acabei por chegar de avioneta, na companhia do Tenente Coronel Polidoro Monteiro, do comando do BART 2917, sediado em Bambadinca.


©  Jorge Silva – Furriel Miliciano – Guiné 1971/73
- Vista aérea do quartel de Bambadinca (BART 2917), a que pertencia a CART 2716 (Xitole) -
Como homem de acção o comandante Polidoro Monteiro fez questão de a avioneta sobrevoar algumas tabancas que ele ia identificando pelos nomes ao mesmo tempo que fazia questão de referir que pertenciam ao IN (inimigo). Na altura, ainda sem pisar o mato, foi autêntico tratamento de choque, já que elas estavam tão próximas do quartel do Xitole... 


Foto retirada de: blogueforanadaevaotres.blogspot.com
- O Tenente Coronel Polidoro Monteiro, assinaladoà direita do General Spínola -
Mas compreendi a força da mensagem, como um conselho sábio de que ali não poderia haver lugar para facilidades ou distracções!
Ao pisar o terreno do Xitole fui recebido como no meio do mato se sabe receber.


©  Jorge Silva – Furriel Miliciano – Guiné 1971/73
- A exuberante "porta de armas" do quartel do Xitole (CART 2716) -
Sem pompa, mas com calor, solidariedade e camaradagem, este periquito foi acolhido com carinhosos e estridentes “piu-piu” no seio daquela família militar. 
E todos quiseram ver de perto e, até, tocar este novo elemento, como a dizerem-me, gestualmente que, daí em diante, podia contar com eles.
Para mim foi uma sensação indescritível, embora muito calorosa e profunda. 
Estranhamente, embora triste por estar a muitas milhas de casa, de repente senti-me confortável por estar em casa! E ao cair da noite recolhi aos meus sumptuosos aposentos...


©  Jorge Silva – Furriel Miliciano – Guiné 1971/73
- Imponente pôr do Sol no quartel do Xitole (CART 2716) -


©  Jorge Silva – Furriel Miliciano – Guiné 1971/73
- A maioria dos aposentos para pernoitar no quartel do Xitole (CART 2716), tinham a vantagem (segurança) de ocupar cerca de metro e meio abaixo do chão -
Aí partilhei preocupações e alegrias até Março de 1972 – altura em que a CART 2716 teve a merecida recompensa de encetar os caminhos do regresso a Portugal continental.
©  Jorge Silva – Furriel Miliciano – Guiné 1971/73
- Bissau, Março/72 - Desfile de despedida da CART 2716 (o comandante da companhioa, Capitão Miliciano. Espinha de Almeida, está assinalado com um pequeno círculo vermelho) -
Quase por magia (pois ainda hoje desconheço as razões), em 27 de Março de 1972 (dia do meu 24º aniversário) fui colocado no Batalhão de Engenharia (BENG 447).
Na Engenharia fui responsável pelo depósito dos materiais destinados aos reordenamentos, que, sendo um instrumento crucial da acção política e social de então, visavam o reagrupamento e a reorganização de populações, permitindo o seu controlo mais eficaz, a par de uma melhoria nos apoios sociais.


© Foto do Furriel Costa Paulo CCaç 2549
Região do Oio - Farim - Subsector Cuntima - 1970
Reordenamento: construção de uma localidade nova para as populações
no âmbito da política seguida pelo Gen. Spínola

Nessas funções dependi directamente do Capitão Miliciano Quaresma que, por seu turno, reportava ao (então) Major Otelo Saraiva de Carvalho.



Foto retirada de quebranotas.blogspot.com - Otelo Saraiva de Carvalho
Nos tempos de lazer, eu e outros camaradas fundámos um conjunto musical (Beng 447) e tivemos o ensejo de dinamizar inúmeros espectáculos, designadamente na Associação Comercial da Guiné, no cinema Udib, no Hospital de Bissau, nos Clubes de Sargentos e de Oficiais do Quartel General, no restaurante A Tabanca e em diversas festas particulares, tanto de civis como de militares.
©  Jorge Silva – Furriel Miliciano – Guiné 1971/73
- Bissau/1972, no intervalo de uma actuação do conjunto musical BENG 447 -
Nessa actividade tive o ensejo de conhecer diversas individualidades (civis e militares) de Bissau, designadamente o então Alferes Miliciano Nuno Nazareth Fernandes, também colocado no BENG 447, em Bissau, e autor, como se sabe, de diversas canções que venceram o festival português da canção, tais como "O vento mudou", "Desfolhada portuguesa" e "Menina".


Foto de:  estival1979.no.sapo.pt  -  Festival RTP da canção 1979 - Nuno Nazareth Fernandes
E numa altura em que os voos da TAP estavam suspensos por razões de segurança, valeu-me o Tenente Coronel Saraiva (do Quartel General) para, face às dificuldades, me oferecer a viagem de regresso num avião militar em 24 de Abril de 1973...
Nesse dia vivi um sonho maravilhoso e indescritível, que nem o ruído ensurdecedor dos motores do avião conseguiu esmorecer.
Mal pisei o solo do aereoporto de Lisboa fiz ouvidos moucos às instruções de um Alferes que, a todo o custo, me procurava encaminhar para os Adidos (na calçada da Ajuda), e, louco de alegria, apanhei o primeiro táxi que me apareceu e, sem olhar para trás, segui para Ermesinde ansioso por rever e abraçar a minha mulher e os meus dois filhos que, bem vistas as coisas, sofreram mais com esta história do que eu próprio...




Actual Parque Urbano de Ermesinde - Autor: João Pais II, em: br.olhares.com
- Sem dúvida, uma realidade bem distinta da vivenciada na Guiné -

Jorge Silva
ex-Furriel Miliciano
Email: jorgesilva2716@gmail.com