sábado, 28 de setembro de 2013

Em memória do meu amigo Mamadú, pescador do Xitole ..


Em memória do meu amigo Mamadú, pescador do Xitole …
A expressão raças humanas (branca, negra, etc.) resulta de um conceito antropológico antigo e ultrapassado, cada vez mais em desuso, embora o racismo continue a ser uma infeliz e nociva realidade.
Creio que em vez dessa divisão por raças em função da cor da pele devemos considerar, tão só, uma única raça: a raça humana.
Claro que há pessoas com cores de pele branca, negra, amarela e, até, vermelha. Tal como há pessoas que, apesar da cor da pele ser branca, têm olhos azuis, enquanto outros os têm verdes, ou castanhos, ou cinzentos, ou pretos... E há outras que sendo designadas por terem pele branca afinal têm-na muita morena (escura mesmo) e, a par disso, cabelos muito escuros (mesmo pretos), enquanto também as há de pele nitidamente branca e com cabelos loiros.
Hitler foi um verdadeiro e demoníaco “mestre” nestas distinções.
E por isso tornou-se o primeiro responsável pelo genocídeo de milhares e milhares de seres humanos, para além das nefastas consequências de uma guerra mundial que prejudicou de forma irreparável a humanidade.
Hitler não quis ou não foi capaz de perceber que tal diversidade humana é um dom da natureza e uma mais valia da humanidade.
E por isso procurou destruir a obra humana, criada pela própria natureza, cuja diversidade os homens se encarregaram de ir enriquecendo ao longo de milhares e milhares de anos.
Ao contrário de Hitler saibamos, pois, aproveitar a riqueza dessa diversidade.
E para tal ultrapassemos preconceitos com mais informação válida e mais conhecimento, pois enquanto eles persistirem não seremos capazes de compreender as diversas realidades, costumes e culturas.
Eu tive a sorte de ter a oportunidade de poder começar a compreender as referidas diferenças a partir de 1971.
Com 22 anos fui para a Guiné (Xitole).
Branco, e crescido no meio de brancos, fui conviver com negros.
Católico fui para o meio de muçulmanos (de etnia Fula).
Tive lá um amigo especial - o pescador do Xitole que, na altura teria 40 e tal anos, mas que quando tinha apenas 15 anos foi levado de Dakar pelos franceses até Paris para, mesmo sendo menino, ser incorporado no exército francês e ser forçado a participar na última guerra mundial.
O pescador (que se a memória não me falha se chamava Mamadú), era um homem maduro, vivido e culto.
Quando estive destacado na Ponte dos Fulas, juntamente com o David Guimarães, o pescador acompanhou-nos e, com excepção dos fins de semana, em que ia para junto da família, permaneceu connosco cerca de um mês, para lançar as redes no Rio Pulom e capturar o peixe que nos saciou a fome.
Nas muitas conversas que tive com o Mamadú, um dia perguntei-lhe porque é que os homens do Xitole passavam os dias sentados na aldeia enquanto as mulheres se entregavam à vida dura da agricultura, inclusive com filhos às costas e outros a seu lado. E, soltando o que me ia na mente, perguntei-lhe porque é que tais homens não ajudavam as mulheres nos trabalhos agrícolas e, ainda de forma mais directa, se tal se deveria ao facto de esses homens não gostarem de trabalhar?
O meu amigo pescador captou-me o preconceito e com imensa calma, feita de muita sabedoria, o Mamadú perguntou-me se na minha terra (Porto) eu encerava o chão, lavava a louça, lavava a roupa à mão, estendia a roupa para secar, passava a roupa a ferro, etc., etc.
Estávamos em 1972 e, também por preconceitos, tudo isso era, inquestionavelmente, trabalho de mulher. De tal modo que qualquer homem que assumisse a realização dessas tarefas seria alvo de epítetos nada abonatórios nem desejáveis.
Naturalmente respondi-lhe que não, o que correspondia à verdade. Mas mesmo que assim não fosse ter-lhe-ia dito na mesma que não.
Com um sorriso amigo e de compreensão ele explicou-me que lá no Xitole as coisas também funcionavam de idêntico modo, pois trabalhar a terra era serviço exclusivo de mulher, pelo que se algum homem fosse ajudar a mulher a trabalhar a terra perderia a consideração e o respeito da aldeia.
E, completando a lição, o Mamadú explicou-me que os Fulas eram comerciantes por natureza, pelo que estavam sentados à espera que a guerra acabasse para, sem correrem perigos, poderem trilhar as matas, de aldeia em aldeia com a mercadoria às costas, para comercializarem os seus produtos e sustentarem a família.
Percebi, então, que esses amigos Fulas do Xitole não eram malandros.
A guerra é que o era. De tal forma que nem sequer os deixava trabalhar.
Aprendi, então, que não devia avaliar os outros à luz da minha cultura e dos meus valores e muito menos com a mente envenenada por preconceitos.
O meu amigo Mamadú, pescador do Xitole, ensinou-me isso e muitas coisas mais.
E com isso ajudou-me a crescer e a ser homem.
Há pouco tempo informaram-me que ele já teria falecido, o que muito lamento.
Evoco-o deste modo, cumprindo uma obrigação que tinha para com esse amigo, já que deixei passar a oportunidade de, olhos nos olhos, lhe agradecer o quanto me ensinou, com uma paciência, uma maturidade e uma humildade difíceis de igualar, a atestar que tive o ensejo de ter estado diante de um homem culto e bom de pele negra.
Obrigado Mamadú, velho pescador do Xitole.

E apesar de ser católico desejo que Alá te guarde.